Cultura Organizacional
Inteligência Artificial
Funcionários são trocados por IA que eles mesmos criaram
King demite 200 funcionários e os substitui por IA que eles desenvolveram
29/07/2025, 20:35
Você consegue se colocar no lugar de alguém que dedicou anos da vida para criar uma ferramenta, apenas para descobrir que essa mesma criação será usada para eliminar seu emprego? Essa situação, que parece saída de um filme de ficção científica, tornou-se realidade cruel para centenas de funcionários trocados por IA no estúdio King, responsável pelo famoso jogo Candy Crush.
O que aconteceu na King
A King, desenvolvedora por trás de sucessos como Candy Crush e Farm Heroes Saga, passou por uma onda de demissões que afetou aproximadamente 200 funcionários em seus escritórios europeus. As demissões atingiram principalmente as equipes de Londres, Barcelona, Estocolmo e Berlim, focando em áreas específicas como design de níveis, experiência do usuário (UX), redação narrativa e pesquisa com usuários.
Funcionários trocados por IA não é apenas uma manchete sensacionalista, mas a realidade enfrentada por profissionais que trabalharam incansavelmente para desenvolver ferramentas de inteligência artificial destinadas a otimizar seus próprios processos de trabalho. A situação representa um dos casos mais emblemáticos de como a automação pode se voltar contra seus próprios criadores.
O estúdio, que faz parte da Microsoft desde a aquisição da Activision Blizzard em 2023, justificou os cortes como parte de uma reestruturação necessária para eliminar redundâncias organizacionais e tornar a empresa mais eficiente. Contudo, a justificativa oficial não ameniza o impacto emocional e profissional vivido pelos funcionários afetados.
A ironia por trás das demissões
A ironia desta situação é devastadora. Profissionais de narrativa, design de experiência do usuário, criação de fases e pesquisa de público dedicaram anos ao desenvolvimento e treinamento de modelos de inteligência artificial capazes de executar suas funções com maior velocidade e eficiência. Agora, esses mesmos especialistas receberam avisos de que seus cargos estão ameaçados pelas ferramentas que ajudaram a criar.Um funcionário anônimo da King expressou sua revolta ao site mobilegamer.biz:
"A maior parte do design de níveis foi eliminada, o que é loucura, já que eles passaram meses desenvolvendo ferramentas para criar níveis mais rapidamente".
O relato continua:
"Agora, essas ferramentas de IA estão basicamente substituindo as equipes. Da mesma forma, a equipe de redação está sendo completamente removida, já que agora temos as ferramentas de IA que essas pessoas criaram".
A situação revela uma contradição fundamental: enquanto os trabalhadores se esforçavam para inovar e melhorar os processos da empresa, inadvertidamente estavam construindo seus próprios substitutos digitais. Essa realidade reflete um dilema ético profundo sobre o desenvolvimento e implementação de tecnologias disruptivas no ambiente corporativo.
As ferramentas desenvolvidas pelos funcionários incluíam sistemas automatizados para criação de níveis, algoritmos de otimização de experiência do jogador, e sistemas de análise de dados comportamentais dos usuários. Cada uma dessas inovações representava meses ou anos de trabalho dedicado, conhecimento especializado e criatividade humana transformados em código.
Contexto das demissões na Microsoft
As demissões na King fazem parte de um movimento maior de reestruturação na Microsoft, que anunciou o corte de aproximadamente 9.000 funcionários em 2025, representando 4% de sua força de trabalho global. A medida afeta diversas divisões da empresa, mas a área de jogos foi particularmente impactada.
Phil Spencer, CEO da Microsoft Gaming, enviou um memorando interno confirmando que as demissões visam "posicionar a divisão de Games para um sucesso duradouro" e permitir que a empresa foque em "áreas estratégicas de crescimento". Spencer enfatizou que a decisão envolve o "encerramento ou redução de atividades em determinadas áreas" e a remoção de camadas de gestão para aumentar a agilidade organizacional.
A Microsoft tem investido pesadamente em inteligência artificial, destinando US$ 80 bilhões para construção de infraestrutura de IA e data centers voltados ao treinamento de modelos. Esse investimento maciço contrasta drasticamente com os cortes de pessoal, evidenciando uma clara priorização da tecnologia sobre o capital humano.
O cenário se torna ainda mais complexo quando consideramos que a Microsoft, através de suas aquisições, se tornou proprietária de algumas das franquias de jogos mais valiosas do mundo. A aquisição da Activision Blizzard por US$ 68,7 bilhões em 2023 trouxe consigo não apenas títulos icônicos como Call of Duty e World of Warcraft, mas também a responsabilidade sobre milhares de funcionários.
As demissões não se limitaram à King. Outros estúdios da Microsoft também foram afetados, incluindo o Halo Studios, ZeniMax Online Studios, e várias equipes de desenvolvimento de Call of Duty. Projetos promissores como Perfect Dark e Everwild foram cancelados, e o estúdio The Initiative foi fechado após oito anos sem lançar um único jogo.
O caso mais impactante
Entre todos os cortes realizados na King, o que mais chama atenção é o caso do Farm Heroes Saga, onde aproximadamente 50% da equipe foi dispensada, representando cerca de 50 profissionais do escritório de Londres. Este jogo, que alcançou a marca de 20 milhões de usuários ativos diários e está presente em 200 países, representa um dos sucessos mais significativos da King, ficando atrás apenas do Candy Crush.
A equipe de Farm Heroes Saga havia desenvolvido ferramentas avançadas de inteligência artificial para otimizar a criação de níveis, análise comportamental de jogadores e personalização da experiência do usuário. Essas ferramentas permitiam a geração automática de níveis balanceados, ajustes dinâmicos de dificuldade baseados no comportamento do jogador, e otimização de monetização através de análise preditiva.
O jogo, que possui uma mecânica similar ao Candy Crush mas com foco em frutas e vegetais, requer um design de níveis extremamente cuidadoso para manter o equilíbrio entre desafio e diversão. A equipe dispensada era responsável por esse delicado processo de balanceamento, que agora será executado por algoritmos que eles próprios ajudaram a desenvolver.
Um aspecto particularmente cruel desta situação é que o Farm Heroes Saga tem demonstrado crescimento consistente, com mais de 180 milhões de partidas jogadas diariamente e mais de 500 milhões de minutos de gameplay por dia. A decisão de cortar metade da equipe de um produto tão bem-sucedido evidencia que as demissões não estão relacionadas ao desempenho do jogo, mas sim a uma estratégia corporativa de substituição de recursos humanos por automação.
O processo de demissão no Farm Heroes Saga incluiu a suspensão temporária de parte da liderança com remuneração garantida, com o encerramento oficial previsto para setembro. Essa abordagem gradual tornou o processo ainda mais angustiante para os funcionários, que tiveram que conviver com a incerteza durante meses.
O que dizem os funcionários
Os relatos dos funcionários afetados revelam uma mistura de indignação, tristeza e preocupação com o futuro da indústria. Um desenvolvedor anônimo expressou sua frustração:
"O fato das ferramentas de IA estarem substituindo pessoas é absolutamente repugnante, mas tudo se resume à eficiência e aos lucros, mesmo que a empresa esteja indo muito bem no geral".
Outro funcionário compartilhou uma perspectiva mais ampla sobre as implicações dessas demissões:
"Se estamos introduzindo mais ciclos de feedback, é loucura remover os próprios desenvolvedores; precisamos de mais mãos e menos liderança".
Esta declaração destaca uma contradição fundamental: como uma empresa pode melhorar seus produtos removendo justamente as pessoas responsáveis por entender e implementar melhorias?
Os funcionários também relataram problemas estruturais dentro da King que precederam as demissões. Pesquisas internas realizadas antes dos cortes já indicavam que o moral da equipe estava em níveis alarmantemente baixos. Um funcionário descreveu a situação como "o moral da equipe está no fundo do poço" desde o anúncio das demissões.
Críticas ao departamento de Recursos Humanos da King também emergiram durante esse período. Funcionários alegaram que estavam se tornando alvos do RH por demonstrarem insatisfação internamente com as decisões da empresa.
"O RH da King é uma bagunça total e tem sido assim há anos", disse uma fonte anônima. "É um exemplo extremo de um departamento de RH cuja função é proteger a empresa, e não os funcionários".
A situação criou um ambiente de trabalho tóxico onde funcionários que expressavam preocupações legítimas sobre a direção da empresa eram vistos como problemáticos. Essa dinâmica contribuiu para um clima de medo e incerteza que se estendeu muito além daqueles diretamente afetados pelas demissões.
Funcionários de outros estúdios da Microsoft também expressaram indignação. Um desenvolvedor do Halo Studios afirmou estar "furioso" com as demissões, especialmente após receber um e-mail de Phil Spencer enaltecendo a rentabilidade do Xbox pouco antes de cinco membros de sua equipe serem dispensados. O mesmo funcionário acusou a Microsoft de se esforçar para substituir cargos por "agentes de IA", intensificando a adoção do Copilot em processos criativos.
A pergunta que permanece não é se a IA transformará a indústria - isso já está acontecendo - mas sim se essa transformação preservará os valores humanos que tornam os projetos significativos. A resposta dependerá das escolhas que fazemos hoje sobre como implementar essas tecnologias e como tratamos as pessoas que dedicaram suas carreiras a criar as experiências que amamos.
Fonte: Terra | Canal Tech | Tecnoblog | Adrenaline