Cinema

Uma série de sci-fi argentina reviveu uma HQ dos anos 50

"O Eternauta" reacende o debate sobre desaparecidos e a importância da memória histórica na Argentina

15/05/2025, 17:00

O Eternauta
O Eternauta
O Eternauta

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A neve cai silenciosamente sobre Buenos Aires. Mas não é uma neve qualquer – é mortal, invisível em sua toxicidade. Assim começa "O Eternauta", série argentina que desde sua estreia na Netflix em 30 de abril deste ano tem conquistado espectadores ao redor do mundo. Porém, muito além de uma simples produção de ficção científica, esta obra carrega uma história real tão impactante quanto sua narrativa ficcional. Uma história de resistência, perda e uma busca que persiste há quase meio século.


A obra que transcende a tela

O Eternauta não é apenas entretenimento – é um doloroso retrato do que acontece quando a ficção e a realidade se entrelaçam de maneira trágica. Baseada na icônica história em quadrinhos de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, publicada originalmente em 1957, a produção traz Ricardo Darín no papel do protagonista Juan Salvo, um homem comum que, após uma devastadora nevasca tóxica dizimar Buenos Aires, se transforma no Eternauta – um viajante do tempo e do espaço em busca de sua família perdida.

A série de seis episódios acompanha a trajetória de Salvo e um grupo de sobreviventes que formam uma resistência contra uma força alienígena invasora. Com efeitos visuais impressionantes e uma narrativa sufocante, O Eternauta consegue capturar a tensão e o desespero de um mundo em colapso, enquanto explora temas como solidariedade, resistência coletiva e o impacto das escolhas individuais em cenários extremos.


O criador que viveu seu próprio pesadelo

Por trás dessa história ficcional existe uma realidade devastadora. Vinte anos após criar o personagem que viajava eternamente em busca dos seus, o próprio Oesterheld teve um destino semelhante ao de sua criação. Em 1977, durante a sangrenta ditadura militar argentina liderada por Jorge Rafael Videla, o renomado autor foi sequestrado junto com suas quatro filhas e seus quatro genros.

O regime militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983 deixou um rastro de aproximadamente 30 mil desaparecidos. Entre eles estava a família Oesterheld, cujos corpos nunca foram encontrados. As investigações posteriores confirmaram que as filhas de Oesterheld foram assassinadas, e acredita-se que o próprio autor tenha sido morto em 1979.

A participação de Oesterheld no grupo Montoneros, uma organização política-militar de resistência à ditadura, selou seu destino. Sua obra, que já era uma alegoria sobre invasores e opressores, tornou-se ainda mais simbólica após seu desaparecimento, transformando-se em um poderoso lembrete contra o autoritarismo e a violência de Estado.


Uma série, uma esperança renovada

Com o lançamento de O Eternauta na plataforma de streaming, um novo capítulo dessa história começou a ser escrito. A visibilidade internacional da série reacendeu um apelo que persiste há décadas: a busca pelos possíveis netos de Héctor Germán Oesterheld.

Duas das filhas do autor estavam grávidas quando foram sequestradas – Diana, com seis meses de gestação, e Marina, prestes a dar à luz. Durante a ditadura argentina, era prática manter mulheres grávidas prisioneiras até o parto, para depois assassiná-las e entregar os bebês a famílias ligadas ao regime militar, criando-os sob falsas identidades.

As organizações Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio) e HIJOS (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio) lançaram um novo apelo após a estreia da série: "Você está assistindo 'O Eternauta'? Se sim, e nasceu em novembro de 1976 ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978 e tem dúvidas sobre sua identidade, entre em contato conosco."

Se vivos, os netos de Oesterheld teriam hoje entre 47 e 48 anos. Elsa Sánchez, viúva do autor, dedicou sua vida à busca pelos netos até falecer em 2015, sem jamais conhecê-los. "Minha família foi destruída assim como nosso país foi destruído", declarou ela em uma de suas campanhas com as Abuelas.


A metáfora política que se tornou realidade

O que torna O Eternauta uma obra tão singular é justamente como sua narrativa espelha eventos reais. Na história, alienígenas exterminaram impiedosamente a população de Buenos Aires. Na Argentina real, a junta militar impôs um regime de terror que resultou em milhares de mortos e desaparecidos.

A adaptação para a Netflix mantém esse paralelismo, destacando a figura do "herói coletivo" em vez do herói individual – um conceito fundamental na obra original. A ideia de que a resistência só é possível através da união e solidariedade ganha ainda mais força quando contextualizada com a biografia do autor.

A história se destaca também por ser uma das primeiras obras de ficção científica latino-americana a ganhar reconhecimento global, colocando Buenos Aires – e não Nova York ou Londres – como cenário de uma catástrofe mundial. Essa mudança de perspectiva enriquece o gênero e abre espaço para narrativas que refletem realidades locais através de lentes universais.


Um símbolo de memória e resistência

Mais do que entretenimento, O Eternauta funciona como um poderoso símbolo contra o esquecimento. A imagem de Juan Salvo, presente em murais e grafites por toda Buenos Aires, transcende seu papel ficcional e se torna um memorial vivo às vítimas da ditadura.

A renovação da série para uma segunda temporada, já anunciada pela Netflix, garante que essa história continuará a ser contada, alcançando novos públicos e mantendo viva a memória de um dos períodos mais sombrios da história argentina.

Para muitos argentinos que ainda buscam respostas sobre o paradeiro de familiares desaparecidos, a série representa uma esperança renovada de que a verdade, assim como Juan Salvo em sua jornada eterna, continua a buscar um caminho para casa.



O impacto cultural além das fronteiras

O sucesso de O Eternauta impulsionou o interesse por outras produções latino-americanas de ficção científica que abordam questões sociais e políticas. A série se junta a produções como "Fallout", "The Society" e "Silo" no rol de narrativas pós-apocalípticas que exploram dilemas morais em sociedades em colapso, mas com uma perspectiva única que só poderia vir da experiência latino-americana.

Críticos têm destacado como a produção equilibra o aspecto fantástico da invasão alienígena com uma representação realista e humana das reações das pessoas diante de uma crise. É essa humanidade que conecta a ficção com a dolorosa realidade histórica, transformando "O Eternauta" em muito mais do que simples entretenimento.

Em um momento em que o mundo enfrenta seus próprios desafios sobre memória histórica, direitos humanos e verdade, O Eternauta serve como um lembrete poderoso de que as histórias que contamos – sejam elas de ficção científica ou baseadas em eventos reais – têm o poder de manter viva a luta por justiça.

Enquanto Juan Salvo continua sua busca eterna por sua família através do tempo e espaço na ficção, na realidade, organizações e familiares perseveram em sua própria busca pelos desaparecidos. E talvez, graças à visibilidade trazida pela série, essa busca finalmente encontre seu caminho para casa.

Fonte: Omelete

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