Música
Inteligência Artificial
Quando o prompt vira rockstar: milhares de fãs, palco vazio
IA cria hits cada vez mais populares, mas será que consegue nos emocionar como a música real?
01/07/2025, 15:00
Um amigo ouviu The Devil Inside todos os dias e se entregou à música. Só descobriu depois de semanas que aquilo era produto de uma inteligência artificial. Eu, como músico, percebi logo no primeiro verso: voz impecável, precisão cirúrgica, mas sem respiração, sem hesitação, sem humanidade.
Essa diferença entre quem percebe e quem não percebe ilustra o ponto central deste artigo: estamos diante de uma revolução sonora, mas será que ela realmente nos toca?

Imagem: reprodução / Instagram (@the._.devil._.inside)
Música volátil, terreno fértil para IA
A indústria musical hoje valoriza fenômenos instantâneos. Um refrão pega em um reel, viraliza, sobrevive umas semanas, desaparece. Artistas surgem e somem, ao contrário de ícones eternos como Queen, Madonna ou Michael Jackson. Essa volatilidade deixa espaço para bandas de IA que conseguem simular a receita de sucesso, mesmo que sem alma.

Imagem: reprodução / Instagram (@officialqueenmusic)
A fórmula do hit e o papel da IA
Reels, TikTok e auto reprodução pedem músicas de 30 segundos, refrões fáceis e batidas repetíveis. A IA entrega isso com perfeição. Tod Machover, ao propor os “hiperinstrumentos”, defende que a tecnologia musical deve ampliar a expressividade humana. Mas se usada sozinha, sem direção humana, ela só replica o óbvio. E música não é óbvio.
Música como memória emocional
Um segundo de I Can’t Get No (Satisfaction) é o suficiente para reconhecer a canção. Isso é memória afetiva em ação. Segundo a neurociência, a música ativa regiões ligadas à memória autobiográfica, emoção e empatia. Ela transporta, conecta, revive sensações. Uma banda de IA pode replicar timbres, estruturas, mas não o contexto vivido que dá significado a esses sons.
A música é marcada por encruzilhadas históricas. Guitarras distorcidas nos anos 70, o lamento dos funks cariocas, as vozes que falam por gerações. A IA pode criar uma faixa estilo Nina Simone, mas sem a dor racial e espiritual que moldou sua obra, ela será só mais um som.
Corpo, presença e ho bina
Nada substitui uma apresentação ao vivo. Em fevereiro de 2025, Kendrick Lamar assumiu o centro do palco no intervalo do Super Bowl e transformou o evento em um manifesto. A performance da faixa Not Like Us não foi apenas uma resposta direta a Drake, mas um gesto cuidadosamente construído com camadas de crítica, ironia e pertencimento.
Em um dos momentos mais tensos, Kendrick olhou fixamente para a câmera e soltou a frase “Say Drake, I hear you like ’em young”. O verso fazia alusão a acusações sérias contra seu rival.
Para intensificar a provocação, Kendrick trouxe Serena Williams ao palco, ícone global e conterrânea de Compton. Ela dançou o crip walk, uma coreografia com raízes em comunidades negras marginalizadas, carregada de significado político e estético. A apresentação não foi só sobre música. Foi sobre corpo, narrativa e contexto vivo. Algo que a IA jamais faria.
Na língua sesotho, ho bina descreve a manifestação física através da música e da dança. Essa expressão ancestral garante que o som seja corpo, emoção e resistência ao mesmo tempo. IA não respira, não dança, não sente tensão. IA apenas reproduz arquivos.

Imagem: reprodução / Instagram (@kendricklamar)
Habilidade humana e hesitação
Freddie Mercury fazia de suas pausas um momento dramático. David Bowie assumiu uma persona alienígena: Ziggy Stardust. A IA jamais poderia inventar esse gestual existencial. Bowie escolheu reinventar-se, assumir uma outra identidade e desafiar o sentido da performance. Isso não é algoritmo, é escolha.
Em palavras célebres: “o computador é burro na medida em que lhe falta capacidade de hesitar.” A hesitação é o ponto de partida para a nuance, para o desconforto e para a criatividade. A IA entrega o caminho mais provável. Arte nasce justamente do imprevisível.
A dor humana também cria arte memorável. Ney Matogrosso, em seu filme Homem com H, mostra como suas transformações pessoais, identidade e coragem deram voz à sua potência artística. A IA pode imitar sua voz digitalmente, mas não carrega suas experiências.
Essa relação entre música e outras artes é clara nas trilhas sonoras de filmes como Top Gun ou Amélie Poulain. A música ali não ilustra. Ela narra, ela constrói emoção, ela estrutura narrativa. Nunca vai existir um filme sobre uma “banda de IA” porque não há traumas, história, conflito ou gesto humano a dramatizar.

Imagem: reprodução / Instagram (@davidbowie)
A emoção simulada e a liberdade do ouvinte
Não se trata de demonizar a IA. The Devil Inside evidencia uma capacidade técnica impressionante. Cada pessoa é livre para ouvir o que quiser. Mas música é como abraço: se não sentir calor, a presença é apenas virtual. Podemos até nos envolver com sons bem feitos, mas, no fundo, retornamos ao que pulsa de verdade.
Depois do refrão, o silêncio
Se The Devil Inside consegue reunir milhares de fãs sem se apresentar de fato, a pergunta que fica é: estamos ouvindo música ou apenas consumindo um universo previsível, sem corpo e sem dor? Se a IA compõe o hit de hoje, quem compõe nossas memórias afetivas de amanhã?
Escrito por: Igor Thomas