
Cinema
Maria e o Cangaço
Isis Valverde surpreende em produção autêntica no Disney+
27/05/2025, 14:00
A série "Maria e o Cangaço", disponível no Disney+, reimagina a trajetória de Maria Bonita através de uma perspectiva feminina, combinando rigor histórico com narrativa dramatúrgica. Esta análise avalia a eficácia comunicativa, estrutura narrativa e fidelidade factual da produção, identificando acertos e lacunas que impactam sua recepção pelo público e crítica.
Organização temática e progressão dramática
A série adota uma estrutura não linear, intercalando flashbacks da vida de Maria Bonita (interpretada por Isis Valverde) com cenas de ação no sertão. Essa escolha estilística, embora ambiciosa, compromete a coesão em momentos-chave, como na transição abrupta entre a gravidez da protagonista e as cenas de confronto com as volantes. A divisão em seis episódios curtos (30-40 minutos) agiliza o ritmo, mas reduz a profundidade psicológica dos personagens secundários, como Dadá (Mohana Uchôa), cujo arco de violência sexual é apenas sugerido.
A lógica interna da trama é fortalecida pela representação realista do cotidiano do cangaço, incluindo detalhes como a rotina de saques, a hierarquia do grupo e o protocolo de segurança durante as fugas. Contudo, a motivação de Maria para se juntar a Lampião (Júlio Andrade) carece de desenvolvimento explícito, limitando-se a diálogos vagos sobre "escapar da opressão". A ausência de cenas que explorem seu passado antes do cangaço fragiliza a construção emocional do protagonismo feminino.
Precisão histórica e adaptação literária
Baseada na obra "Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço", de Adriana Negreiros, a série incorpora elementos cruciais da pesquisa histórica, como a prática de abandonar crianças recém-nascidas para evitar capturas. No entanto, omite detalhes documentados, como a alfabetização de Maria Bonita e seu papel ativo na estratégia militar do grupo. A escolha de retratar Lampião como figura mais vulnerável (em cenas de ferimentos e dependência emocional) diverge de relatos históricos que o descreviam como líder implacável.
A ambientação no sertão da década de 1930 é tecnicamente impecável, com locações em Cabaceiras (Paraíba) e figurinos que replicam trajes originais do cangaço, incluindo gibões de couro e medalhas religiosas. A fotografia de Adrian Teijido utiliza paletas de cores terrosas e enquadramentos amplos para destacar a aridez da caatinga, criando contraste visual com a intensidade dos closes nos olhares da protagonista.
Clareza na comunicação de temas sensíveis
A série enfrenta o desafio de retratar a violência contra mulheres no cangaço sem romantizá-la. Cenas como o estupro coletivo de Dadá por volantes são insinuadas por sombras e gestos, evitando exploração gráfica, mas falham em contextualizar a prevalência desse crime histórico. A narrativa equilibra a dureza do tema com momentos de resistência feminina, como quando Maria Bonita desafia Lampião ao questionar a exclusão das mulheres nas decisões do grupo.
A dicotomia entre maternidade e vida no cangaço é o eixo central da trama. A decisão de Maria de entregar a filha é apresentada como imposição coletiva, mas a série não explora o trauma psicológico decorrente, limitando-se a planos melancólicos da protagonista olhando para o horizonte. Essa superficialidade reduz o impacto emocional de um tema potencialmente transformador.
Estratégias narrativas e identificação emocional
A série utiliza recursos visuais simbólicos para criar identificação, como a repetição de cenas em que Maria corta o próprio vestido para estancar ferimentos, ato que metaforiza a renúncia à feminilidade tradicional. A atuação de Isis Valverde, especialmente na cena do parto em meio a um tiroteio, conecta-se ao público através do realismo físico (suor, expressões de dor) e da ausência de diálogos estereotipados.
Entretanto, a falta de desenvolvimento de antagonistas prejudica a tensão dramática. As volantes são retratadas como massa indistinta de opressores, sem individualização que justifique sua crueldade. A ausência de um vilão específico (como o coronel Ferreira de histórias clássicas do cangaço) dilui o conflito central, tornando-o genérico.
Aprimoramentos narrativos e técnicos
Inclusão de flashbacks estruturantes: Cenas da infância de Maria Bonita e seu primeiro contato com o cangaço enriqueceriam a motivação da personagem.
Profundização de vilões: Introduzir um antagonista baseado em figuras históricas, como o tenente João Bezerra, daria concretude aos conflitos.
Uso de narração em off: Trechos do livro de Adriana Negreiros como voz narrativa poderiam ampliar o contexto sociopolítico sem didatismo.
Pesquisa adicional necessária
Entrevistas com historiadores especializados em cangaço para validar detalhes como táticas de combate e estrutura hierárquica.
Análise de cartas e diários de cangaceiros para incorporar diálogos autênticos.
Estudos sobre impactos psicológicos do abandono parental em contextos de violência, enriquecendo o arco de Maria.
"Maria e o Cangaço" destaca-se pela ousadia em resgatar uma perspectiva feminina do cangaço, rompendo com narrativas masculinizadas. A combinação de produção técnica refinada e performances intensas compensa parcialmente lacunas narrativas, posicionando a série como contribuição relevante ao audiovisual brasileiro. Sua principal falha reside na subutilização de fontes históricas detalhadas, que poderiam transformar o drama pessoal de Maria Bonita em reflexão ampla sobre gênero e poder no sertão. Para atingir excelência, a obra necessita equilibrar melhor ambição estética com profundidade investigativa.
Fonte: Rolling Stone | Veja Rio